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Duas instituições distintas, mas inter-relacionadas, são tratadas na
Constituição Federal de 1988:
1) a ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL (CF, artigo 93, I; artigo 103, VII; artigo 103-B, XII e § 6º; artigo 129, § 3º; artigo 130-A, V e § 4º; artigo 132);
2) a ADVOCACIA (artigo 133).
A primeira é uma instituição de poder; a segunda, uma instituição de garantia. A primeira é uma instituição-pessoa; a segunda, uma instituição-atividade. A primeira é uma instituição pública; a segunda, uma instituição privada. A primeira é a instituição reguladora; a segunda, a instituição regulada.
O advogado «é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei» (CF/1988, artigo 133; v. também artigo 2º, caput e § 3º, do EOAB) (obs.: o dispositivo é francamente inspirado no artigo 208º da Constituição portuguesa de 1976: «A lei assegura aos advogados as imunidades necessárias ao exercício do mandato e regula o patrocínio forense como elemento essencial à administração da justiça»). Isso porque, conquanto tenha ocupação profissional liberal privada, o advogado exerce - por via reflexa - papel público essencial no refreamento de eventuais excessos e desvios cometidos pelos exercentes da função jurisdicional. Não sem razão é natural não haver «hierarquia nem subordinação entre advogados, magistrados e membros do Ministério Público, devendo todos tratar-se com consideração e respeito recíprocos» (EOAB, art. 6º).
Assim sendo, a advocacia adentra o rol das garantias individuais através do vaso comunicante do § 2º do artigo 5º da CF/1988.
Nesse sentido, ela se coloca ao lado de instituições constitucionais primordiais como o devido processo legal, o duplo grau de jurisdição, o habeas corpus, o mandado de segurança, a reclamação constitucional, a reclamação às ouvidorias de justiça, a fundamentação decisória, o contraditório, a ampla defesa, a imparcialidade etc. Isso mostra um longo percurso histórico de ressignificação liberal, desde a advocacia gratuita leiga do orator na República Romana até a institucionalização garantístico-constitucional da advocacia. Isso revela, outrossim, a necessidade inadiável - ainda que tardia - de uma constitucionalística da advocacia e, a partir dela, de uma bem desenvolvida ciência jurídico-advocatícia em sentido amplo.
Nalguns ambientes procedimentais, dispensa-se a presença do advogado (ex.: CLT, artigos 786 e 791; Lei 9.099/95, artigo 9º; CPP, artigo 654; Lei 5.478/68, artigo 2º). Todavia, o ius postulandi da parte não passa de uma demagogia processual (quase sempre derivada dos slogans da «democratização do acesso à justiça» e da «socialização do processo»). Afinal de contas, a parte não domina a ciência e técnica jurídico-probatórias; logo, não raro, desassistida, produz prova inútil, ou não produz prova útil. Com isso, muitas vezes, o juiz se sente tentado a coadjuvá-la, ordenando de ofício tantas provas quantas sejam necessárias à demonstração do seu direito. Ou seja, o juiz se demite de sua neutralidade funcional e, em consequência, perde a sua imparcialidade. Prejudica assim a parte contrária, não-hipossuficiente, que igualmente faz jus a um juiz imparcial. Torna-se um «causídico togado» do hipossuficiente, pois. Dessa forma, já se vê a importância de se fazer do advogado uma omnipresença inafastável em juízo.
Lembre-se que a essência do fenômeno constitucional é a limitação jurídico-normativa do poder. De ordinário, essa limitação se opera em dois planos. a) No plano horizontal, o Estado se trisseca nos poderes legislativo (que desempenha com preponderância a função jurislativa), executivo (que desempenha com preponderância a função administrativa) e judiciário (que desempenha com preponderância a função jurisdicional), os quais se controlam reciprocamente (afinal, toda divisão enfraquece). Por sua vez, b) no plano vertical, imputa-se aos cidadãos - sem o quê seriam reles súditos - posições jurídicas ativas, cujo exercício é bastante a evitar, mitigar ou eliminar os efeitos nocivos do exercício arbitrário do poder pelo Estado.
A essas posições se dá o nome de garantias. b.1) Se oponíveis aos exercentes da função jurislativa, são garantias contrajurislativas (ex.: garantia do controle de constitucionalidade; mandado de injunção); b.2) se oponíveis aos exercentes da função administrativa, são garantias contra-administrativas (ex.: garantias do concurso público e da licitação); b.3) se oponíveis aos exercentes da função jurisdicional, são garantias contrajurisdicionais (ex.: garantias do juiz natural e da ampla defesa). E a cada função estatal corresponde uma garantia, que a controla. Com isso se confina o poder em quadrantes republicanos, conferindo-lhe contrastabilidade.
Nesse específico sentido, a advocacia é uma garantia de liberdade contrajurisdicional, isto é, uma barreira de contenção anti-arbitrária aos juízes. A representação da parte por um letrado legalmente habilitado permite que os atos do juiz sofram fiscalização técnica e, se errôneos, sejam impugnados. Portanto, onde se debilita a advocacia, ali a magistratura tende a perder-se. Pois que, onde a garantia falha, ali se abrem brechas a desgovernos. Daí a necessidade de se vigiarem incansavelmente as prerrogativas dos advogados (EOAB, artigo 7º), sem as quais a garantia se despotencia numa quase inutilidade. No dizer de Izio Masetti, “advogado sem prerrogativas é a mesma coisa que um soldado sem o fuzil”. Elas são a condição mínima de garanticidade da advocacia. Arranhadas, mais do que se vilipendiar o advogado, vulnera-se o jurisdicionado. Como bem pontuava FRANCO CIPRIANI, «[...] tutte le limitazioni che si pongono all’opera processuale degli avvocati si ritorcono contro i cittadini» (La professione di avvocato. Avvocatura e diritto alla difesa: saggi. Napoli: Edizioni Scientifique Italiane, 1999, p. 24).
Os advogados de Viena bem sabiam disso quando em 1897 ameaçaram uma revolução com o objetivo de impedir a entrada em vigor do autoritário e moralista Zivilprozessordnung de 1895, encomendado pelo Imperador Austro-Húngaro ao jurista FRANZ KLEIN: um diploma procedimental civil judiocrática, judiocêntrico, que menoscabava as partes e dava ao juiz - o «representante profissional do bem comum» - grandes poderes discricionários para as conduções material e formal do processo. Aliás, a implementação do estatuto a partir de 1º de janeiro de 1898 só foi possível graças à instituição dos «inspetores judiciais», que vigiaram assiduamente con mano dura os tribunais no período crítico de aplicação do novo Código (sobre o tema: CIPRIANI, Franco. En el centenario del Reglamento de Klein. Trad. Alvarado Velloso. Revista de derecho procesal. Cordoba. n. 2. 2001, p. 31 e ss.). Interessante registrar que a ideologia kleiniana foi acolhida pelo Codice italiano de 1940, que, por sua vez, influenciou enormemente o CPC brasileiro de 1973, ainda reverberando no CPC de 2015.
Por isso, a OAB desempenha serviço público independente, não se reduzindo a um simples «conselho de fiscalização profissional» (cf. STF, ADI 3.026/DF, rel. Min. Eros Grau). É bem verdade que ela regula e fiscaliza o exercício da profissão de advogado. Mas a advocacia transcende a mera condição de atividade econômica lato sensu. Trata-se de um serviço estruturalmente privado, mas funcionalmente público (cf., aliás, EOAB, artigo 2º, § 1º: «No seu ministério privado, o advogado presta serviço público e exerce função social»). Nesse sentido, a OAB é uma instituição-pessoa que zela por uma instituição-atividade; uma instituição-de-poder que regula uma instituição-de-garantia. Esse é o quid particularizante que fundamenta o seu regime administrativo sui generis. Deve ela operar na zona cinzenta entre a autonomia autárquica e a liberdade absoluta. Somente essa supra-autarquicidade excepcional - que lança a OAB para fora da Administração Pública Federal - lhe permite zelar pela contrajurisdicionalidade da advocacia. Enfim, é preciso que a OAB habite as franjas da extra-estatalidade para que proteja com destemor a contra-estatalidade da advocacia. Ela deve ser gestada dentro do Estado e depois ejetada para fora dele para que eventualmente contra ele se possa posicionar.
O advogado combate o arbítrio jurisdicional pontual-individual nos processos em que atua (impugnando o error in iudicando vel procedendo, representando contra o juiz junto à Corregedoria, etc.); a OAB, o arbítrio jurisdicional sistêmico-coletivo (zelando pelas prerrogativas da classe, legitimando-se às ações de controle abstrato de constitucionalidade de normas que embasem o aludido arbítrio, etc.). Por isso, um e outro fraquejam no seu augusto mister constitucional quando, por exemplo, toleram nos juízes: o desrespeito à lei e à Constituição; a desvinculação aos pedidos, fundamentos e argumentos aportados aos autos pelas partes; as ausências de urbanidade, lhaneza, integridade e correção; os excessos de linguagem; o interesse jurídico, moral ou econômico no desfecho da causa; as conexões fortes de afeição, aversão ou envolvimento profissional com qualquer das partes; a predisposição, a preferência, a antipatia ou o preconceito, por qualquer das partes, em razão de raça, cor, religião, sexo, orientação sexual, idade, estado civil, ideologia político-social, status socioeconômico, grau de escolaridade etc.; as iniciativas oficiosas que impliquem favorecimento ou perseguição funcional a qualquer das partes; a submissão servil a interferências e pressões interna ou externa, direta ou indireta, de ordem política ou técnica; as manifestações em público de predisposição, preferência, antipatia ou preconceito por qualquer das partes; as decisões não-motivadas ou sub-motivadas; as flexibilizações procedimentais oficiosas; os justiceirismos ilegais ou extralegais; as pressuposições de culpabilidade; a morosidade; o burocratismo; os formalismos inúteis; a inoperância.
Não há exercício de garantia sem coragem. O poder do Estado-juiz intimida; logo, a advocacia não combina com pusilanimidade. Como prescrito no § 2º do artigo 31 do EOAB, «nenhum receio de desagradar a magistrado ou a qualquer autoridade, nem de incorrer em impopularidade, deve deter o advogado no exercício da profissão». A fortiori, nenhum receio de desagradar ao Poder Judiciário ou a qualquer outra instância de poder, nem de incorrer em impopularidade, deve deter a OAB na salvaguarda da dignidade da excelsa profissão que regula e fiscaliza. A OAB na sua macro-atuação e o advogado no seu micro-ofício não se podem esquivar do combate ao arbítrio jurisdicional, sob pena de serem capturados pelo Judiciário, transformando-se em forças acessórias, adjetas, secundárias. Porque profanada a autocontenção judicial, alguns setores da magistratura brasileira se encontram hoje perdidos num ativismo judicial e num instrumentalismo processual exacerbados. Para o bem da Democracia e da República, é preciso que a Advocacia esteja cada vez mais fortalecida e, desse modo, os ajude a reencontrarem-se...
Eduardo José da Fonseca Costa - 09/05/2018
Juiz Federal em Ribeirão Preto/SP, Bacharel pela USP. Especialista, Mestre e Doutor pela PUC-SP. Presidente da ABDPro. Diretor da RBDPro. Membro do IBDP, do IPDP e do IIDP